No panteão egípcio, inúmeras são as deidades que incarnam o sublime regente dos céus, e, em particular, o seu rutilante ceptro de luz ou a força criadora que em seu extasiante esplendor se renovava, como é o caso de Horakhti, “o Hórus do Horizonte”, identificável como um homem de cabeça de falcão, sobre a qual repousa um disco solar; ou Ámon- Rá, deidade venerada em Tebas, cujo fastígio de luz, cálice solar derramado ao florir da aurora, sublimava o firmamento e conduzia a humanidade até à apoteose divina. Todavia, o desejo de se designar o astro- rei em si ou de evocar o disco solar somente era satisfeito através do pronunciar de uma única palavra: Áton. Enquanto variante aperfeiçoada de Ré- Horakthi, Áton era já alvo de um culto modesto mesmo antes da radical subversão de Akhenaton. Na realidade, as primeiras menções ao seu nome, enquanto designação do globo luminoso, datam do Antigo Império, podendo ser encontradas nos “Textos das Pirâmides”. Porém, é somente na 18ª dinastia, mais exactamente no reinado de Amenófis III, que Áton torna-se no centro de um desafio a toda a realidade conhecida, ao satisfazer o desejo deste faraó e, de seguida, do seu filho Amenófis IV, de centrar a religião egípcia num único deus. Mas que caminhos trilhou Áton até alcançar o estatuto supremo, ou seja, o de divindade dinástica? Ao longo de dezassete anos, a alma do Egipto ardeu no cálido e conturbado vórtice de uma revolução, fruto de paixões férvidas e imensuráveis, concebidas por um coração eivado de poesia e espiritualidade: o de Akhenaton, “O Herético”, faraó cujo reinado se encontra envolto num obscuro véu de densos enigmas, propiciados pela escassez de materiais históricos concretos.
Fruto da união entre o faraó Amenófis III e a rainha Teie, Amenófis IV galgou as veredas da infância e os labirintos da adolescência entre o fastígio do imponente palácio tebano de Malgatta, onde se submeteu a uma educação rigorosa, que visava despertar e esculpir, diligentemente, não somente as suas faculdades intelectuais, como as suas capacidades físicas. O seu mentor, Amenotep, filho de Hapu, inculcou no espírito algo sonhador do jovem príncipe o respeito pela Luz Criadora, cujo fulgor animava igualmente os deveres sagrados inerentes ao trono, que Amenófis IV ocupou em 1364 a . C., quando detinha apenas quinze anos. A seu lado, resplandecia uma jovem de beleza esplendorosa, Nefertiti, a quem, todavia, se havia unido por imposição de dirigentes egípcios, que ignoravam a devastadora paixão que entrelaçaria, posteriormente, as almas dos dois soberanos. Esta jovem rainha, Nefertiti, cujo nome significa “a bela veio”, pertencia, segundo a opinião de diversos historiadores, a uma famigerada família de um poderoso elemento da corte, versão contestada por alguns que afirmam que a soberana era na realidade filha de Amenófis III.
Ao tomarem Tebas como sua capital, os faraós tornaram Ámon no mais prestigiado dos deuses egípcios, concedendo aos sacerdotes que lhe prestavam culto um poder imensurável, que atingiu o seu apogeu, quando esta divindade se fundiu com o deus- solar Ra. Na verdade, não era contra Ámon, em concreto, que Akhenaton se batia, mas sim, contra a poderosa hierarquia religiosa tebana , que principiava a desafiar, embora subtilmente, a autoridade real. Desta forma, Akhenaton adopta o título de sumo- sacerdote de Heliópolis, denominando-se assim de “o maior dos videntes”, num acto que o prendeu à mais antiga expressão religiosa, considerada mais pura do que a religião tebana. Porém, é em Carnaque, templo dedicado a Ámon, que Akhenaton esculpe a sua visão, ordenando aos escultores que concebessem um ser singular, delineado num vórtice de características masculinas e femininas, que se reflectem, entre outros, num rosto deformado e num ventre saliente evocando uma fecundidade, que pretendia ilustrar que o faraó é mãe e pai de todos os seres.Após ter defrontado uma vez mais os sacerdotes tebanos ao retirar-lhes a gestão de intrínsecos bens temporais, inerentes ao trono do Egipto, Akhenaton reserva-lhes , no sexto ano do seu reinado, um novo sobressalto, ao tomar a decisão de criar uma nova cidade, desenhada na luz sublime de Áton, abandonando, deste modo, Tebas. O local eleito, “revelado pelo próprio Áton”, repousa na orla direita do rio Nilo, entre Mênfis e a antiga capital dos faraós, sendo actualmente conhecido pelo nome de Tell El- Amarna.
Teoricamente, o culto dedicado àquele que se convertera “no pai dos pais e na mãe das mães”, facultava a todos o acesso ao Divino, já que para adorar Áton, bastaria dirigir-se ao magnificente soberano da luz. Contudo, tal ideologia sagrou-se numa utopia impressiva, terrivelmente aparada da realidade, uma vez que a essência de Áton persistia num paraíso proibido aos simples mortais, aos quais era oferecida a presença efectiva do deus no céu, mas não a compreensão do mesmo. Como tal, tornou-se vital a existência de um intermediário, que simultaneamente incarnasse as luzentes manifestações do deus único e permitisse ao mais comum dos mortais com ele comungar. Ocupando este intrínseco papel de mediador, Akhenaton converte-se então no único profeta do seu deus e seu representante junto dos crentes. Estes, por seu turno, prestavam culto a Áton através de uma oblação algo inusitada, que se concretizava numa oração pronunciada em casa, diante da estátua do rei. Na realidade, não se contentando em reformular a religião egípcia, Akhenaton introduziu no panteão artístico, além das insólitas silhuetas andróginas e de ventres salientes que traiam um estado de gravidez perpétuo, crânios alongados e rostos deformados, que se distanciavam deveras dos ideais cultivados anteriormente.
Nefertiti permanece imutavelmente ao lado do seu esposo, a quem dedica um amor imensurável, apenas comparável à devoção que a leva a prostrar-se diante da magnificência de Áton, a cujo culto se entrega, literalmente. Tornada num fascinante símbolo de beleza, a rainha exerce uma vital função religiosa, sendo “aquela que faz repousar Áton com a sua bela voz e as suas belas mãos, que seguram sistros”. Esta soberana, cujas responsabilidades políticas são inegáveis, oferece porém o seu coração ao amor que nutre pela
Hino ao Sol
Bela é a tua alvorada, oh Áton vivo, Senhor da eternidade!
Tu és brilhante, tu és belo, tu és forte!
Grande e profundo é o teu amor; os teus raios cintilam nos olhos de todas as criaturas; a tua pele espalha a luz que faz os nossos corações viver.
Tu encheste as Duas Terras [nota: Akhenaton refere-se ao Egipto] com o teu amor, oh belo Senhor, que a ti mesmo te criaste, que criaste a Terra inteira e tudo o que nela se encontra: os homens, os animais, as árvores que crescem no chão.
Levanta-te para lhes dar vida, pois tu és a mãe e o pai de todas as criaturas. Os seus olhos voltam-se para ti, quando ascendes no firmamento. Os teus raios iluminam toda a Terra; o coração de cada um enche-se de entusiasmo, quando te vê, quando tu lhe apareces como seu Senhor. Quando te pões no horizonte ocidental do céu, as tuas criaturas adormecem como mortos; obscurecem-lhes os cérebros, tapam-se-lhes as narinas, até que de manhã se renova o teu brilho no horizonte oriental do céu.
Então, os seus braços imploram o teu Ka, a tua beleza acorda a vida e renasce-se! Tu ofereces-nos os teus raios e toda a Terra está em festa; canta-se, toca-se música, soltam-se gritos de alegria no pátio do castelo do Obelisco , o teu templo de Akhenaton, a grande praça que tanto de agrada, onde te oferecem alimentos como homenagem…
Tu és Áton, tu és eterno… Tu criaste o longínquo céu para aí te elevares e veres as coisas que criaste. Tu és único e, no entanto, dás vida a milhões de seres, é de ti que as narinas recebem o sopro da vida. Quando vêem os teus raios, todas as flores vivem, essas mesmas que crescem no chão e se abrem quando tu apareces. Com a tua luz se embriagam. Todos os animais se levantam de um salto, os pássaros que estavam nos seus ninhos abrem as suas asas, para fazerem preces a Áton, fonte da vida.
Porém, a récita de indignação que rasgava o peito Egípcio esbateu-se em cânticos de submissão, elevados mesmo no instante em que o soberano proibiu o pronunciamento da palavra “deuses”. Eclipsada pela celestial visão da “Cidade do Sol” e pelo divino alento de enaltecer o esplendor de Áton, a liderança do Egipto tombou, negligentemente, numa remota e obscura lacuna da alma do regente, de cujas mãos sonhadoras resvalaram um imensurável rol de erros. Abominando conflitos ou guerras, Akhenaton adopta uma política de passividade, crendo que o prestígio do Egipto bastará para preservar o equilíbrio no Próximo Oriente. Desta forma, desvanece o halo de protecção que o faraó deve manter em torno dos seus aliados, permitindo que gradualmente o império formado por Tutmósis III se desintegre nas mãos do poderoso povo hitita. Embora tenha já perdido a maioria dos seus vassalos, corrompidos ou ameaçados, Akhenaton continua a ignorar os desesperados pedidos de auxílio provindos daqueles que ainda lhe são fiéis. A morte de Ribaldi, príncipe da Síria, que pagara com a sua vida semelhante fidelidade não rasgam tão denso véu de passividade. Esta ausência de qualquer reacção por parte do faraó fá-lo perder os portos fenícios, acentuar a revolta da Palestina, permitir a atroz chacina que levou ao desaparecimento de Mitanni, aliado do Egipto. O mutismo de Akhenaton talha o brilho feroz das armas dos hititas e assírios, tingidas do sangue de aliados egípcios. Como não conceder à atitude do regente o epíteto de deplorável? Como não condenar o seu reinado, conspurcado pelo travo do sangue? Porém, é possível argumentar a seu favor: talvez os relatórios que repousavam nas mãos fossem incompletos, adulterados ou mesmo falsos. Ter-se-ia ele, de facto, apercebido, da aterradora gravidade da situação? A luz de Áton tornou-se, para os egípcios, num fragmento das trevas, que invadiam, gradualmente, o seu pais, já fustigado por graves perturbações económicas, florescidas da ausência de tributos pagos por aliados. Os inimigos de Akhenaton fizeram ressoar a sua cólera nos murmúrios do rio Nilo, bordando-a, de seguida, num apelido significativo: “O Herético”. Na realidade, somente Akhenaton e um exíguo grupo de fiéis entregavam a sua alma à luz de Áton, deidade incapaz de silenciar os clamores tentadores de Osíris, de cujos braços o povo egípcio não se ousava desprender.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Verónica Freitas