Maçonaria e Arquitectura, como é do conhecimento geral, encontram-se intimamente associadas. A primeira, poderemos dizer que é a Arte de talhar a pedra -, a segunda, a Arte de conformar o espaço. Ambas partilham características comuns: são simultaneamente operativas e especulativas; balançam nessa eterna luta entre o mundo dos interesses e o mundo dos valores; atingem a sua mestria no equilíbrio entre a razão e a emoção, no equilíbrio entre a poética e a erudição. Ambas assentam a sua génese semântica nos quatro pressupostos de Chomsky: o pragmático, o canónico, o icónico e o analógico. Ambas se destinam a construir espaços (o humano e o edificado), com suporte na Sabedoria, na Força e na Beleza. Muitos Maçons foram Arquitectos; alguns Arquitectos foram Maçons.
O espaço (e o tempo) Maçónico constrói-se nos Rituais de abertura e encerramento da Loja, fundeia-se nos seus Pilares, ilustra-se no seu acervo simbólico e ultima-se na Cadeia de União. Na Arquitectura – edifícios, jardins, espaços urbanos, cenotáfios e sepulcros – várias marcas, símbolos e suportes canónicos foram sendo deixados, ao longo dos tempos, por Arquitectos Maçons ou apenas por Pedreiros Livres, como pegadas desse tempo “intemporal” e desse espaço “atópico”, e simultaneamente universais, que caracterizam a Augusta Ordem e a infinita cadeia de união que a enforma: do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul, do Zénite ao Nadir, do passado ao presente e do presente ao futuro, mas, também, entre o meio dia e a meia noite.
Lisboa, cidade a que já se ousou chamar Lucipónia, ou Cidade da Luz também teve Maçons na fábrica dos seus espaços, dos seus edifícios e dos seus artefactos. Outros que, pela sua relevância em vida, permanecem ligados à toponímia da Cidade. Espaços e sítios há ainda que, pela sua apropriação, pelo suporte que forneceram às actividades Maçónicas e para-Maçónicas, merecem ser recordados, assinalados e, nalguns casos, perpetuados. Muitas vezes tenho ouvido falar, e até lido sobre a existência de uma suposta Arquitectura Maçónica. Publicam-se livros e artigos sobre a Quinta da Regaleira, sobre o Terreiro do Paço, a Baixa Pombalina, e sabe-se lá mais o quê, referindo o “maçonismo” desses espaços e lugares.
Fala-se e escreve-se sobre “edifícios maçónicos”, apenas porque ostentam, nas suas fachadas, frontões triangulares, compassos e esquadros, folhas de acácia ou outros elementos, formais ou compositivos, mais sofisticados da simbólica maçónica. Não sendo eu um pragmático positivista, gostaria de afirmar que, a existir uma Arquitectura Maçónica ou uma Arquitectura da Maçonaria, esta se poderia apenas referir a intenções referentes aos augustos valores da Ordem Maçónica. A construção humana de templos físicos, supostamente divinos, nada mais representa do que um acto votivo: uma vontade materializada numa imagem-fétiche obviamente precária, para os crentes. Naturalmente cénica e arrogante, para os incrédulos…
Pretendo eu dizer que, apesar de num dado projecto ou realização de Arquitectura se poderem utilizar determinados cânones harmónicos, determinantes de uma proporção simbolicamente considerada “divina”, ou tão somente adequada a um pressuposto fim ritual, ou de um acervo de sinais rigorosamente escolhidos para o efeito, qualquer pretensa ortodoxia inerente não passará nunca daquela que preside ao estabelecimento de um qualquer templo ou habitáculo do supremo ou do divino, independentemente dos conceitos subsequentes e inerentes. Isto é, o verdadeiro templo situa-se, pelo prumo e pelo nível, na mente consciente de cada um de nós, humanos, lúcidos e livres. Poderemos, contudo, referir uma atitude arquitectónica, entre o vernáculo e a erudição, referente à simbólica maçónica: v.g. a chapa triangular que serve de fundo ao botão da campainha da porta principal da sede em Lisboa do Grande Oriente Lusitano. Será ela uma campainha maçónica? A estrela flamejante decorativa de alguns edifícios do Bairro Grandela, em Benfica, ou do Bairro Estrela de Ouro, na Graça, ou os azulejos da Cervejaria Trindade, serão eles maçónicos?. Serão eles elementos configuradores de uma arquitectura maçónica?
A pergunta de fundo é: poderá falar-se de uma arquitectura maçónica?
É lugar comum saber-se que a Arquitectura e a Nobre e Augusta Ordem Maçónica são indissociàveis, na sua essência: O Grande Arquitecto do Universo, na sua atitude demiúrgica, que pode aqui assimilar-se ao acto Cosmogónico é, no imaginário colectivo, um Arquitecto. Ou, noutros termos, eu diria, todo o ente criador, na sua dimensão espaço-formal, é um Arquitecto. O imaginário subjacente ao conceito de Arquitectura tem-se vindo a esvaziar à medida que o vocábulo se assume na linguagem comum. Já ouvi falar de engenharia financeira ou da arquitectura da comunidade europeia, em suportes logísticos muito distantes dos da engenharia ou da arquitectura. O universo será o mesmo que chamar pneumectomia à supressão de um pneu a um automóvel, ou amareloctomia, sempre que se pinta algo de amarelo… O assédio linguístico é cada vez maior nos tempos que correm. A publicidade televisiva é disso exemplo.
Voltando ao tema em apreço. Poderá falar-se de uma Arquitectura Maçónica? Poderá sustentar-se tal conceito? Mesmo por referência ao Templo de Salomão ou ao da Grande Loja Unida de Inglaterra? Refiro-me ao conceito “tectónico” e espacial da questão, que não às arquitecturas feitas por Maçons. Vejamos: o Grande Arquitecto do Universo, seja qual for o significado ou o conceito que cada um de nós lhe queira atribuír, não poderia nunca habitar um imaginário tão restrito como o de um Templo concebido pela espécie humana, uma apenas das suas obras criativas! Seria redutor da sua capacidade demiúrgica!
“O hábito não faz o monge”, diz a sabedoria popular. O penteado, o vestuário, os adereços, nada mais são do que máscaras ou signos de identidade e de comunicação. O esquadro e o compasso não contêm valor próprio. Sem os valores que lhes projectamos, valem tanto como qualquer sinal de trânsito, na perspectiva do arborígene… É, de facto, necessário esvaziar o sentido das coisas antes de encontrar coisas com um verdadeiro sentido, e a verdade é, em si mesma, uma coisa sem sentido algum… tal como a justiça e a razão… entre os estados de espírito e o espírito dos estados das coisas, vai um passo de dinossauro! O símbolo vale apenas quando o seu significado profundo se encontra já dentro de cada um de nós. Essa é a verdadeira identidade do símbolo.
Vamos lá ver: a Maçonaria tem a ver com a “arte” dos pedreiros; a “arquitectura” tem a ver com a arte dos criadores. Em termos correntes, o Arquitecto concebe e o pedreiro executa. No entanto, como temos vindo a falar de uma “maçonaria especulativa”, herdeira de uma “maçonaria operativa” dos tempos anteriores ao século das Luzes, poderíamos correr o risco de falar hoje apenas de arquitecturas especulativas, ou seja, daquelas que se servem apenas de espelhos, na sua materialidade. Muito daquilo que entendemos hoje como referência, resulta de legados que considerámos relevantes na nossa formação, ou seja, na formação do imaginário que suporta o nosso sistema criativo. Muito do que nos rodeia é considerado irrelevante, apenas porque àqueles a quem confiamos o nosso imaginário não foi considerada pertinente a respectiva relevância.
Tudo o que nos rodeia e enforma tem uma lógica, um sentido, a relevância ou a redundância de um modelo, ou de um sistema modelar. Subjaz a cada artefacto arquitectónico o confronto entre um querer e um poder, a guerra, por vezes silenciosa, por vezes estridente, entre um Arquitecto, um sítio, um programa, um crivo legal determinante. O emolumento final é, frequentemente, a alteração física e fisionómica da moldura – urbana ou rural – de suporte. Mas, toda a obra que fica e que se fixa nessa tecitura imparável que é a transformação do quotidiano; que se torna determinante de novas regras, de novas formas de ser e de viver o espaço; que atenta o inesgotável fluxo de mudança que caracteriza o Homem, no seu fácies civilizacional e urbano; acaba, mais cedo ou mais tarde, por pertencer ao imaginário colectivo de memória, que comummente se apelida de Património. Património, porque inseminador de acções matriciais fixas e geradoras de valores seguros: vale tudo aquilo que difere e tudo aquilo que confere. A mudança é, antes de mais, um pressuposto seguro. São alternativas a revolução e a rotura.
Se é nos pais que encontramos os trilhos que nos transportam para o local em que nos encontramos, é nos avós que bebemos a segurança de uma orientação, já que foram eles os geradores dos pais, e estes se encontram, ainda, numa qualquer busca, que não nos envolve necessariamente. É assim: os pais transmitiram-nos o que foram descobrindo, mas o verdadeiro legado advém do entendimento lúcido e desapaixonado que os avós adquiriram. A ponte que liga o que hoje é válido e o que, tendo sido válido ontem, ou in illo tempore, deixou de o ser, pertence ao domínio de uma ontologia operativa. Digamos, a título de exemplo, que a estratégia formal do arco ogival se tornou extemporânea, embora o quadrado ou o círculo, enquanto suportes geométricos, ainda sejam operativos. Já não faz sentido o código Morse, mas as telecomunicações são cada vez mais úteis e necessárias. (Corbusier dizia que o valor arquitectónico do Parténon era semelhante ao do telefone. Eu respondo que o Parténon é um instrumento de comunicação tão importante como o telefone…)
Há algo de inerte e intemporal na lógica dos sistemas operativos arquitectónicos. Algo que nos permite falar de equilíbrio, de tensão, de percurso, de dimensão, e que é isento de uma expressão plástica adicional. Existem elementos qualificadores da imagem, que, para além das vertigens criativas conjunturais, reflectem um sentimento ancestral de composição, de simetria, de contemplação dos valores humanos imutáveis, a que poderemos chamar éticos e estéticos. Existe um sentido racional, geométrico, intuitivo, que nos permite decifrar o erro, identificar o correcto. Nada disto tem suporte na tratadística; tudo isto foi perseguido pela tratadística. O incómodo ou o prazer causado pelos diversos sistemas formais que nos envolvem têm um suporte plástico, geométrico, físico, palpável. O gosto não se restringe a um “porque sim”.
Decompor um espaço edificado em elementos, eventualmente aleatórios, eventualmente estranhos aos objectivos conscientes da sua autoria, poderá parecer erróneo. Desmontar um automóvel por peças poderá, eventualmente, não conduzir aos aspectos essenciais da concepção do mesmo automóvel. No entanto, cada estilhaço ou fragmento do monólito constitui um aforismo e o mundo, a cidade, é cada vez mais um somatório de aforismos…. Contudo, se as peças a decompor ultrapassarem a essência mecânica, e se detiverem noutras ordens de decomposição julgadas mais pertinentes, os objectivos a atingir poderão demonstrar-se mais profícuos. Esses elementos, contudo, por mais simbólicos que se tornem, para um dado sistema de valores, não constituirão, nunca, esse sistema de valores, mas tão somente o suporte cultural que os rege.
Isto é: o triângulo com um olho no interior só representa o “Delta luminoso” para quem se reconhece nele. Em caso contrário, não passa de mais um signo decorativo e ilustrativo do contexto em que se situa, que poderá ser e é, geralmente, o do gosto e o da estética, na restrita e imensa asserção que os contém! Assim, falar de uma Arquitectura Maçónica, equivale a falar-se de uma outra benfiquista, socialista, hípica ou telefónica, ou seja, desprovida de sentido e de conteúdo logístico…
Eu sei. Eu sei que estou a ofender o imaginário de muitos Maçons. Sei que todos nós aprendemos a chamar Templo a um espaço físico determinado, que eu afirmo aqui que, enquanto espaço físico, se transforma em Templo, apenas através dos nossos rituais. O conceito de Templo, na situação vertente, pouco ou nada terá a ver com o sítio, com o espaço arquitectónico de suporte, mas, sobretudo, com o imaginário e o desígnio subjacentes. Lá está aquele Irmão a esvaziar o sentido das coisas, dirão alguns. E está, de facto, porque este Irmão está farto de coisas cheias de sentidos que não lhes pertencem. Às vezes é mais sensato chamar as coisas pelos seus nomes próprios, ou apenas observá-las, do que tecer considerações exacerbadas a seu respeito.
Claro que o arquétipo espacial e formal do nosso templo é arquitectónico, fundeando-se no do Templo de Salomão. Desde o Século XII, mas com maior incidência nos sécs. XVII e XVIII, encontramos tentativas gráficas de formalização do Templo de Salomão: de Villalpando ao Escurial, de Fischer von Erlach a Boulée. Mas qual seria, então, o arquétipo do Templo de Salomão? Hipoteticamente a comunicação divina… Não confundamos iconografia com Arquitectura. Uma ocupa-se de sinais significantes, outra, ocupa-se de espaços significantes. Resta-lhes, como resíduo, o denominador comum. E o significante reside na mente de cada um de nós e no espaço fraterno, que não arquitectónico, que os Maçons pretendem edificar. O arquétipo do templo maçónico é, assim, no meu entender, o espaço transcendente, sublime e sagrado da Cadeia de União.
Luis Conceição, Arquitecto, Prof. Universitário e M.·. M.·.
(R.·. L.·. Convergência, n.º 501, a Oriente de Lisboa, G.·. O.·.. L.·..)