Saciados os céus da alma humana na tempestade do viver, eterno festival de paixões em chama, onde, entre a sumptuosidade de um banquete de relâmpagos se brindava à luz da verdade, o corpo, lavado do seu sentir pela chuva da morte, era então convertido em múmia, para que, no fausto de um funeral destinado a contar a natureza eternal do espírito, este vosso sepultado de forma honrosa. Um surpreendente halo de festividade nimbava os funerais, quão clímax da existência, em torno do qual o pensamento dos Egípcios orbitava, entre um rol imensurável de preparativos e economias. Inebriados com promessas de imortalidade, apressavam-se a erguer e ornamentar túmulos, a adquirir os vitais caixões, seguidos de sumptuosas imitações de componentes do seu quotidiano, que o defunto desejava que o acompanhassem na sua derradeira viagem. Na realidade, esta ideologia era alimentada por uma fracção do produto nacional bruto, que, num ápice, desvanecia-se, entre as mãos de um conjunto económico, encarregue de ocupar-se da fabricação de determinados arranjos funerários. A oeste das cidades egípcias, palco da extinção do fulgor solar, estende-se a imensidão da orla do deserto, sobre a qual foram, imponentemente, erigidas as sagradas necrópoles, sublimes complexos funerários. Desta forma, perto de Mênfis, saúdam-nos Saqqara, Guiza, Abusir, entre inúmeros outros.
Por seu turno, Tebas entregou a sua necrópole à margem ocidental do Nilo, eterna residência de Meretseger, deusa do Ocidente, cujo nome significa “Aquela que ama o silêncio” e que, na realidade, se tornou na perpétua vigilante do deus- chacal Anúbis. Ultimados setenta dias nas moradias dos embalsamadores, o corpo já mumificado é enfim depositado num caixão aberto, faustosamente recamado, que se coloca, de seguida, sobre um carro de arrasto, puxado por uma junta de bois ao longo de todo o soberbo cortejo fúnebre. Precedendo-o, eleva-se a fragrância dos incenso espalhados pelos sacerdotes e os lamentos lancinantes das carpideiras ( elementos vitais num funeral, mas, que, dado o seu elevado custo, eram apenas acessíveis aos mais abastados), que caminham com os cabelos despenteados e os bustos nus; fulguram as jóias, móveis, vestes, cofres e cosméticos, transportados por escravos até à derradeira morada do morto; e escutam-se os passos lentos da família e dos amigos. Uma tempestade de lamentos sacia, num banquete de relâmpagos de dor e trovões de gritados pelo sofrimento, a sacra Natureza espiritual do defunto. Num eterno brinde à saudade, realizado que as lágrimas vertidas pelos céus de seus olhares, as carpideiras recitam fórmulas harmoniosas, que, quais estrelas guias, conduziriam a alma dos entes queridos até ao fecundo paraíso do Além. De facto, estas mulheres, cantoras da deusa Háthor, desfrutavam de um diversificado leque de textos e cânticos, nos quais era evocado o deserto de intempéries que o espírito nómada do defunto teria de atravessar, para alcançar o sublime oásis da regeneração, onde a sua sede de vida seria por fim saciada.
Por oposição a sua irmã, cujo culto era celebrado em diversos templos, disseminados um pouco por todo o país, Néftis não era venerada de forma isolada, privando-se assim de uma existência autónoma, facto que justificava a sua constante aparição ao lado de Ísis. A sua associação ao culto dos mortos aflorou do mito osírico, no decorrer do qual a sua presença é incontornável. Este, tal como referido anteriormente, relata que, após o assassinato e desmembramento de Osíris, as duas irmãs unem-se para recolher todos os pedaços do corpo do defunto, num ritual álgido, ritmado por lamentações vestidas de lágrimas, saudade e dor. Coroada de sucesso a diligência a que se haviam proposto, Ísis e Néftis entrelaçam os acordes de sua voz numa melopeia plangente, ornada de comoção: “Graças a nós olvidaste a mágoa. Nós reunimos teus membros e velámos por teu corpo. Vem ao nosso encontro para que o teu inimigo seja esquecido. Regressa sob a forma que detinhas na terra. Exonera a tua ira e concede-nos a tua clemência, Senhor. Retoma a herança do País Duplo (Egipto), tu, o deus único, cujos desígnios revelam-se benéficos para as divindades. Retorna, pois, sem receios, à tua morada!” A iluminada semente de luz depositada pelo amor de Ísis e pela compaixão de Néftis, no éden do horizonte, desponta por fim sob a forma da flor da aurora, cuja beleza orvalhada de feitiços de paixão anuncia ao céu a ressurreição de Osíris, restituindo o seu trono de turquesas ao Sol da vida eterna. Numa flagrante analogia deste magnificente episódio da mitologia egípcia, Néftis e sua irmã são incumbidas de velar pelo morto, no insondável enigma do Além. Por conseguinte, esta primeira era representada na cabeceira dos sarcófagos reais do Império Novo, enquanto que, por seu turno, Ísis surgia aos pés do mesmo, da mesma forma que não raras vezes eram evocadas em cenas do julgamento dos mortos. É função das duas deusas serem efígie do barco que transportará o defunto na sua derradeira viagem até ao país da luz. De igual modo, e juntamente com Selkis e Neit, oferecem a sua protecção aos vasos canópicos, onde as vísceras do falecido eram conservadas.
Quando por fim se achava diante do túmulo, a múmia é então retirada do seu caixão e suspensa nos braços de um sacerdote embalsamador, cujo semblante mantém-se oculto por uma máscara de Anúbis. O incenso queimado por um outro sacerdote, em geral no limiar da sua carreira e, geralmente, filho do morto, entrelaça-se com as fórmulas mágicas proferidas, solenemente, por um seu homólogo. Seguidamente, dá-se a cerimónia da “Abertura da Boca”, realizada com o fim de conceder, uma vez mais, àquele que faleceu o dom do Verbo, da visão, da audição e do olfacto, de forma a permitir-lhe saborear as dádivas alimentares, deixadas no túmulo. Findo este ritual, o morto acha-se reanimado, num processo que pode, muitas vezes, prolongar-se por vários dias. Entre despedidas, o corpo do morto é, uma vez mais, restituído ao repouso do seu caixão, sendo rodeado por tudo o que podesse vir a ser-lhe necessário no Além. Deste modo, com o fito de impedir que os egípcios abastados necessitassem de entregar-se a qualquer tarefa laboral (nomeadamente, lavrar, ceifar ou bater trigo, entre outros árduos trabalhos), colocavam-se no seu túmulo pequenas figuras de madeira representando os servidores de diversos corpos de ofício e os animais domésticos, além de réplicas em miniatura de casas e barcos. Por seu turno, os príncipes ou outras distintas personagens eram enaltecidas com um inexaurível exército de pequenas estatuetas de madeira, concebendo-se assim algo similar a um mundo artificial. Porém, em meados do segundo milénio antes de Cristo, este hábito de dispor no túmulo figurinhas representando servidores foi substituído pelo costume de colocar na derradeira morada do defunto uma sósia em miniatura deste, representada, habitualmente, em forma de múmia e colocada sobre uma caixa de menores proporções. Esta sósia esculpida, geralmente, em argila, madeira ou metal, achava-se incumbida da tarefa de efectuar, no reino dos mortos, o trabalho correspondente ao defunto.
A tão desejada “Casa da Eternidade”, consistia numa tumba escavada na falésia, e que veio substituir as imponentes pirâmides e mastaba, onde o corpo permanecia oculto num poço funerário subterrâneo ou num local secreto, precedido por uma parte aberta, que permitia um acesso ao exterior: a capela, dotada de uma tela na qual se encontra inculcado o nome do defunto ou, eventualmente, a sua efígie e onde se ergue a mesa das oferendas. Paralelamente, é erigida uma porta fictícia (ponto de ligação entre o mundo dos mortos e o dos vivos), a qual o morto transpõe sempre que deseja usufruir das oferendas que lhe são levadas: pão, legumes, aves de capoeira e carne vermelha nos dias de festa. Concomitantemente, a sua alma desfruta do incenso que invade de prazer o seu olfacto e a sua sede é saciada pela salubridade da cerveja ou água fresca, que lhe deixam, regularmente, visto ele habitar na orla do deserto. Contudo, os longos períodos de caos ensinaram aos egípcios que até mesmo as dádivas “eternas” tornam-se efémeras, pelo que foram concebidas fórmulas, inscritas, mais tarde nas paredes, que permitiam ao morto desfrutar das oferendas, sempre que as pronunciasse. Assim, sobre inúmeras peças comemorativas, surge diversas vezes a seguinte prece: “Vós que viveis na terra e passais diante desta estela, indo e vindo, se ameis a vida e detestais a morte, dizei que há mil pães e mil potes de cerveja”.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Amset- génio com cabeça de homem. Incumbência- protecção do fígado.
Hapi- génio com cabeça de babuíno. Incumbência- protecção dos pulmões.
Duamutef- génio com cabeça de chacal. Incumbência- protecção do estômago.
Khebeh- Senuf- génio com cabeça de falcão. Incumbência- protecção dos intestinos.
Verónica Freitas