TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR

TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR: CONVENCIONALISMO MAÇÔNICO NUMA VISÃO SOCIOLÓGICA

Embora muitas outras ciências diferentes da Sociologia se ocupem de aspectos sociais do homem, nenhuma delas tem o fato da convivência e das relações interhumanas como tema central de estudo, por esse fato, a acreditamos ser interessante utilizarmos os conceitos e instrumentais sociológicos para analisarmos e compreendermos o processo da Iniciação Maçônica.

Conquanto cada uma das outras ciências toquem nos aspectos sociais da vida do homem, nenhuma delas tem como tema próprio e específico o fato social como tal. Pelo contrário a Sociologia é a única ciência que quer estudar o fato social especificamente, o fato da convivência, das atividades e relações interhumanas.

Como sociólogos, estamos interessados nas relações sociais, não porque tais relações sejam econômicas, ou políticas, ou religiosas, mas sim porque são ao mesmo tempo sociais. Se duas pessoas se encontram no mercado, não são por isso meramente dois “homens econômicos”, mas sim dois seres humanos, e entram em relações que não são meramente econômicas. A vida do homem é multilateral.” (MACIVER, 1950:05)

Efetivamente, a vida do homem tem dimensões e várias funções: religiosa, moral, jurídica, política, econômica, artística, etc. Pois bem, todas essas dimensões ou funções ocorrem e se desenvolvem na existência social do homem, isto é, do homem enquanto tem relações com seus próximos. Os homens mantêm relações uns com os outros. Assim ocorre, porque são essencialmente sociáveis, seja dito de passagem, não só pelos motivos que já Aristóteles expusera, “o homem por si só, é uma animal social”, mas também por razões muito mais profundas: a sociabilidade é um componente essencial da vida humana, a tal ponto que esta seria impossível e mesmo inconcebível sem sua componente social.

Desse modo, o estudo sociológico deparará em seu caminho, fatores e fatos psíquicos, com crenças religiosas, com fenômenos políticos, com processos econômicos, com estruturas jurídicas…, e nada disso poderá ser abstraído e deixado inteiramente de lado. Porém o estudo sociológico não se interessa pelo psicológico enquanto psicológico, nem pelo religioso enquanto religioso, nem pelo político enquanto político, nem econômico enquanto econômico, nem pelo jurídico enquanto jurídico…, e sim se interessa por esses aspectos somente na medida em que a consideração dessas atividades e obras culturais possa lançar alguma luz sobre os fatos, relações e processos sociais, enquanto tais, e na medida em que a índole desses conteúdos culturais influa sobre a estrutura das relações e sobre os caracteres dos processos sociais.

Apesar de ser a compreensão dos fatos sociais um elemento essencial e indispensável do estudo da Sociologia, este mesmo estudo não se esgota nela. Requer, além da compreensão, que procedamos também à explicação, porque os fatos humanos, conquanto tenham sentido, não são puros sentidos abstratos, mas sim realidades concretas, no espaço e no tempo, realidades essas que possuem um sentido. Porque o Rito de Iniciação Maçônico e as variadas Instruções nos respectivos graus têm um sentido, é necessário que tentemos compreendê-las. Mas, porque são realidades produzidas por causas e geradoras de efeitos, é necessário que, além disso, tratemos de explicá-las quanto a seu processo causal, ou seja, cumpre que indaguemos de suas causas e de seus efeitos individuais e coletivos.

I – MODOS COLETIVOS DE CONDUTA: OS RITOS
Um dos componentes fundamentais dos grupos e das sociedades humanas é o processo ritual. Os ritos e as cerimônias (significa qualquer procedimento estabelecido para dar dignidade e solenidade a um ato social, e ressaltar desse modo, sua importância ou transcendência) permeiam todo o grupamento social, desde as sociedades primitivas até as modernas sociedades pós-industriais. Os sociólogos contemporâneos afirmam que temos um comportamento ritual quando amamos e fuzilamos, quando nascemos e morremos, quando noivamos ou casamos, quando ordenamos e oramos. Os rituais revelam os valores mais profundos do comportamento humano e o estudo dos ritos torna-se estrategicamente a chave para compreender-se a constituição essencial das sociedades humanas.

Estudam-se hoje os ritos como um fenômeno social que possui um espaço independente, isto é, como um objeto dotado de uma autonomia relativa em termos de outros domínios do mundo social, e não mais como um dado secundário, uma espécie de apêndice ou agente específico e nobre dos atos classificados como mágicos pelos estudiosos.

Assim, designa-se rito a uma série de atos dispostos em procedimentos rítmico, dirigidos ao mesmo fim e repetidos sem variação de umas formas instituídas em certas ocasiões. Podem existir ritos individuais relacionados com atividades rotineiras da vida cotidiana, como por exemplo na ordem dos atos de vestir-se, pentear os cabelos ou na arrumação de um aposento, etc. Mas a maior parte dos ritos são sociais – e são estes os que aqui daremos o nosso foco -, os quais têm como sentido e objeto dar uma solenidade especial ao cumprimento de modos coletivos de vida, solenidade essa que infunda respeito e suscite emoções comuns nos membros do grupo reunidos. Existem ritos religiosos que, além de seu caráter sacro, contribuem para infundir devoção, reverência, sentimento de dependência, correntes emocionais de fusão com a comunidade dos fiéis, etc. Existem ritos políticos ou meramente sociais – como os praticados em certas reuniões de confraternidades – agrícolas, mercantis – principalmente em sociedades primitivas ou antigas, etc.

O rito contribui para delimitar com mais precisão e rigor o grupo e o círculo social, fundindo emocionalmente aos seus membros, e, os diferenciando de outras pessoas não membros, que costumam permanecer frias ante os atos que, ao contrário, suscitam fortes emoções nos participantes; como também, os ritos são meios poderosos para manter vivo o sentimento de pertença a um grupo, para conservar a adesão aos seus modos coletivos, para unir mais estreitamente os seus membros, e para afirmar e reforçar sua significação e sua estrutura, que podem era verificadas pela existência das insígnias, dos trajes cerimoniais, das solenidades, que mantém a distância entre os dirigentes e o público, e a hierarquia, que é a base da organização do grupo. (ORTEGA & GASSET, 1959; LIENHARDT, 1974; VAN GENNEP, 1978; CASSIRER, 1986; ULLMANN, 1991; ELIADE, 1993)

Explicitando a complexidade dos ritos, dentre os quais vamos enfatizar os chamados ritos de passagem, que nada mais são que celebrações em que se coloca em relevo a mudança de um estado para outro (por exemplo a passagem de profano em neófito). Podemos dizer ainda, serem ritos em que se destaca a transição de alguém da sociedade profana para uma sociedade sagrada. “Procuram assegurar a transição para o ignoto, o novum” (CASSIER, 1986:64). Por outro lado, antologicamente os ritos de passagem podem ser vistos sob três grandes subdivisões: ritos de separação, ritos de margem e ritos de agregação. Segundo Van Gennep (1978:31) “essas três categorias secundárias não são igualmente desenvolvidas em uma mesma população nem em um mesmo conjunto cerimonial”.

Os ritos de separação, referindo-se às cerimônias funerais e à separação dos noivos de sua casa paterna, quando contraem matrimônio; fala-se em ritos de agregação quando trata do casamento. Utilizam-se os termos ritos de margem, ao enfocar os ritos respeitantes, diretamente, à iniciação como tal, em que o indivíduo ou os indivíduos são colocados, temporariamente, à margem do grupo, para receber instruções especiais, dentro duma sistemática tradicional. Se, por conseguinte, o esquema completo dos ritos de passagem admite em teoria ritos preliminares (separação), liminares (margem), e pós-liminares (agregação), na prática estamos longe de encontrar a equivalência dos três grupos, quer no que diz respeito à importância deles quer no grau de elaboração que apresentam. Além disso, em certos casos, o esquema se desdobra, o que acontece quando a margem é bastante desenvolvida para constituir uma etapa autônoma. Assim é que o noivado constitui realmente um período de margem entre a adolescência e o casamento.

Mas, a passagem da adolescência ao noivado comporta uma série especial de ritos de separação, de margem e de agregação à margem. A passagem do noivado ao casamento supõe uma série de ritos de separação da margem, de margem e de agregação ao casamento. Esta mistura é também verificada no conjunto constituído pelos ritos de gravidez, do parto e do nascimento. Embora procuramos agrupar todos esses ritos com a maior clareza possível facilitando a análise do ponto de vista didático, tratando-os como atividades, não se pode chegar nestas matérias a uma classificação tão rígida.

II – SÍMBOLOS E UNIDADE COLETIVA
A adequação da conduta aos modos coletivos e o reconhecimento da autoridade não chegaria a vingar, os ritos e as cerimônias careceriam de sentido, se não fosse pelo fato de que o homem social possui a capacidade de criar e usar símbolos.

Todo comportamento humano consiste no uso de símbolos, ou depende disto. Comportamento humano é comportamento simbólico, e, comportamento simbólico é comportamento humano. O símbolo é o universo da humanidade.” (WILLEMS, 1962:234)

Alguns sociólogos observam que diferentemente do animal, o homem não vive num mundo de fatos crus e somente ao compasso de suas necessidades e desejos imediatos, mas, além disso, e principalmente, vive num mundo de símbolos. A linguagem, a religião, a arte, a política, os grupos sociais, constituem parte desse mundo simbólico, formam os diversos fios que tecem a rede simbólica. O homem não se enfrenta com a realidade de um modo imediato e direto; não a costuma ver face a face. Envolve-se a si mesmo em formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos, de tal modo que vê as coisas por meio da interposição dessa trama de símbolos. Um símbolo, diz Titiev (1972), é a representação externa de um sentido ou de um valor, que, por associação, transmite uma idéia ou estimula um sentimento, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. A unidade do grupo, como também, os seus valores culturais, costumam expressar-se simbolicamente. Assim, por exemplo, na nação, por meio da bandeira, do escudo, do hino nacional…

O símbolo, como já foi comentado, é alguma coisa cujo o valor ou significado é atribuído pelas pessoas que o usam. Dizemos “coisa” porque um símbolo pode assumir qualquer forma física; pode ter a forma de um objeto material, uma cor, um som, um cheiro, o movimento de um objeto, um gosto. É importante frisar, que o significado ou valor de um símbolo não deriva nunca, nem é determinado pelas propriedades intrínsecas de sua forma física: a cor apropriada para o luto pode ser amarelo, verde ou outra qualquer; a púrpura não é necessariamente a cor da realeza; entre os governantes Manchu da China, por exemplo, era o amarelo. O significado dos símbolos é derivado e determinado pelos organismos que os usam; sentidos são atribuídos pelos seres humanos a formas físicas que então se tornam símbolos.

Estas considerações nos levam a definir do seguinte modo o nível da realidade social que estamos discutindo: os símbolos sociais são signos (isto é, substitutos conscientes ou presenças intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar ausências) que não exprimem senão parcialmente os conteúdos significados e que servem de mediadores entre os conteúdos de um lado, e os agentes coletivos e individuais que os formulam e para os quais estão dirigidos, de outro, consistindo a mediação em impelir, para uma participação mútua, os agentes aos conteúdos e os conteúdos aos agentes.

Apresentado esta parte mais conceitual primeiramente, trataremos agora de aplicar tais instrumentos ao Rito de Iniciação e aos aspectos provenientes da primeira Instrução.

III – COMPREENDENDO O RITO DE INICIAÇÃO PELA ÓTICA SOCIOLÓGICA
A par daqueles conceitos anteriormente discutidos, concluímos que todo o processo da Cerimônia de Iniciação, pelo qual recentemente passamos, é, assim, um rito de passagem do mundo profano ao mundo sagrado. Afinal, pelas leituras que temos realizado, pelas discussões e bate-papos com os IIr.’. mais iluminados, uma vez ocorrida a iniciação, nós AApr.’. vamos passar por todo um processo de nos evadirmos pouco a pouco de um mundo essencialmente profano e iremos ingressar numa área um pouco mais sagrada, buscando dia-a-dia alcançar o grau de Companheiro, para finalmente atingirmos a chamada plenitude maçônica. “A senda em busca de apaziguar esta ânsia do sagrado prossegue nos altos graus e por que não dizer só termina com a morte” (ADOUM, 1987:79). Todo este período, que vai da iniciação até a morte terrena, pode ser chamado de um rito de margem ou de liminaridade, pois o processo de aprendizagem e maturação só encontrará o seu final, para efeito de análise, na morte terrena. Dentro desse período de margem de longo prazo, participaremos se assim o G\A\D\U\nos iluminar, dos mais diversos ritos de passagem, ou seja, de um grau para o outro.

Nesse momento peço a permissão para me dirigir na primeira pessoa, como forma de demonstrar o sentimento vivenciado. Relembrando a minha preparação como neófito: Meu padrinho foi me buscar em casa com o seu carro, eu estava de terno, sapatos, meias e gravata preta, além da camisa branca como ele me havia solicitado, percorremos alguns quilômetros, quando de repente ele parou ao lado de uma frondosa árvore. Perguntei-lhe. Houve algum problema? Respondeu-me. Não, a partir de agora irá comigo com os olhos vendados e deitado no banco traseiro, sem questionar realizei o que foi me pedido. Durante todo o trajeto, ouvi dele a seguinte explicação: a sua iniciação está começando aqui nesse momento, um Maçom deverá sempre confiar em seu Irmão, e deverá ser sempre um bom guia não só dos seus Irmãos, mas, também, de todos os homens na face da terra. Hoje, com os olhos vendados, você passará simbolicamente por todas as provas que os nossos antepassados passaram, irá sentir o ranger dos dentes, a violência do trovão, a força de um mar revolto, o calor do fogo e o tilintar do ferro. Será convidado a tomar uma taça de um doce vinho que poderá se transformar em amargo veneno se perjuro estiver cometendo. Tudo isto fará parte das viagens simbólicas que você realizará num local apropriado. Irá subir escadas, atravessará por estreitos túneis, saltará de um monte, mas não se preocupe você estará sempre amparado por aqueles que te escolheram como Ir.’.. O Ir.’. Terrível te guiará durante todo esse período, portanto, confie nele, assim como confia em mim, afinal, dessa data em diante, esse deverá ser o procedimento que deverá nortear toda a tua existência.

Eu nada podia ver, porém, sentia cada momento como se uma imensa luz estivesse a me iluminar, sentia o seu calor, e com os olhos do espírito comecei enxergar, da minha infância até hoje, como um filme repassei cada momento, esta imensa luz colocava tudo em uma balança, confesso, o lado dos vícios ficou muito mais pesado do que os da virtude, compreendi então porque G.’.A.’.D.’.U.’. ali me havia colocado e me dado essa oportunidade.

De repente o carro foi diminuindo a velocidade e parou, eu ouvi o barulho de abertura de um portão, parecia de ferro, algo pesado, observando o meu semblante de apreensão e interrogativo, o meu Padrinho falou: estamos chegando… te entregarei a comissão encarregada da sua iniciação que depois de recolhido os seus metais (relógio, pulseira, aliança, anel, dinheiro) te entregarão de volta a mim para que eu então, te entregue ao Ir.’. Terrível, e a partir desse momento, nem mesmo eu você identificará entre os que estarão a sua volta, porém, volto a frisar, você estará protegido pelos IIr.’. aqui presentes e por todos os Irmãos em todos os Continentes Conhecidos e Desconhecidos.
Antes de me entregar ao Ir.’. Terrível definitivamente, o meu Padrinho fez as últimas considerações: esperamos que você venha compreender o significado de tudo por que irá passar, se você perder um só momento, se desviar a tua atenção mental, se estes momentos não penetrarem no teu espírito como ferro em brasa penetra na carne, cuja cicatriz se perpetua por toda a eternidade, jamais será um iniciado, e tão somente um Maçom. Até porque, hoje, você matará o homem velho e nascerá como um homem novo, cujo objetivo maior será sempre o de LEVANTAR TT\ À VIRTUDE E CAVAR PROFUNDAS E ESCURAS MASMORRAS AO VÍCIO.

Denota-se já até esse momento de prepação um rito de separação:

  1. Os olhos vendados querem exprimir o estado de cegueira em que nos encontramos ainda como candidatos à Nossa Ordem. Este estado significa e simboliza as trevas, onde ainda como Profanos, nos encontramos porque ainda não recebemos a luz, ou melhor, materialmente significa a privação da vista, mas, espiritualmente, alude à cegueira que estamos enquanto iniciados e a necessidade que teremos de um guia que nos oriente em direção à Luz. “(…) Luz esta que nos guiará na estrada da vida maçônica, nos caminhos da virtude…” (CASTELLANI, 1985:174), como também, a venda dos olhos simboliza a morte de um órgão vital e estratégico que deverá renascer em um novo estágio de consciência compatível com um recinto mais sacralizado, ou seja, é a condução ao conhecimento por uma iluminação interna, afinal, acredita-se que dentro da noite das nossas consciências, há uma centelha que nos basta atiçar para transformá-la em Luz esplêndida, onde a via intuitiva parece primordial para partirmos nesta marcha ascensional em direção à Luz. Assim, a venda que ao mesmo tempo nos priva de nossa visão física, nos reduz, alegoricamente, ao estado de natureza, no nosso primórdio primitivo;

  2. Fomos separados dos nossos metais, talvez simbolizando o despojamento de nossas riquezas do mundo profano, ou como o nos foi explicado naquele dia, que procedendo assim era como praticássemos o abandono voluntário de toda e qualquer paixão, de tudo quanto há de fictício e vão, no mundo profano; recordo também que nos explicaram que ali estávamos para conquistar a Liberdade e que o homem, que aspira ser livre, deve aprender a se desprender das coisas fúteis e a reduzir as suas necessidades ao mínimo necessário; e acrescentaram que o despojamento de nossos metais representava, alegoricamente, o esquecimento das riquezas e dos preconceitos da sociedade profana. “Agora despojados de vossos metais, é como se estivésseis em estado de necessidade integral” (VASSAL, 2005:23);

  3. Continuaram a nos despir. Nos tiraram o lado esquerdo de nossa camisa, deixando descoberto o peito e o braço esquerdo, depois pediram que descalçássemos o pé esquerdo, e, finalmente nos arregaçaram a perna direita de nossa calça, deixando a descoberto nosso joelho direito – “nem nu, nem vestido”, alegoricamente simbolizando o desnudamento das vestes profanas, pedindo humildemente o ingresso no sagrado. Vejamos e relembremos, estávamos com o coração a descoberto o que evidenciava que não fazíamos qualquer restrição egoísta e oferecíamos nosso próprio coração à nossa Ordem. O joelho direito descoberto destinava-se a nos colocar em contato com o solo sagrado, quando ajoelhamos diante dos altares. O pé esquerdo descalço é uma tradição do Oriente e da África, onde as pessoas se descalçam, antes de pisarem num solo considerado sagrado. “Na realidade, assim posto, quando o candidato se ajoelha, colocando o joelho direito em terra, a sua perna esquerda, posta em esquadria, o pé descalço funciona como o pólo oposto.” (VASSAL, 2005:27) Outrossim, como em outras culturas, o joelho direito descoberto é a alegoria do sentimento de humildade, no ato de genuflexão e no esforço de pesquisa da Verdade. Assim, todos os nossos atos de adoração, além de se revestirem numa maior sinceridade, de se prestarem a imantação, por sua postura, tem como significado expressarem um profundo respeito pelo solo sagrado, que se palmilha.

A Câmara de Reflexões, o Testamento, enfim, a Prova da Terra foram, mais uma vez, o exercício para a morte do homem profano para um renascimento mais consciente em outra esfera do sagrado. Simbolicamente esta descida aos infernos ou pelo menos às profundezas da terra, como nos antigos mistérios greco-orientais, das remotas iniciações, do fundo dos milênios, pode ser considerado um rito de separação para uma longa viagem.

Assim preparados, fomos entregues ao Ir.’.Exp\. Ele nos bateu, levemente, no ombro e disse: – “Sou o vosso guia; tende confiança em mim e nada receeis”. E nos deu várias voltas pelo edifício, até que perceberam que já havíamos perdido o sentido de orientação. Então, fomos introduzidos, cada um individualmente, na Câmara de Reflexões. O Ir.’. Exp\, dando à sua voz uma inflexão um pouco fúnebre, disse: – “Profano, deixo-vos entregue às vossas reflexões. Não estareis sozinho. Deus, que tudo vê, será testemunha da vossa sinceridade”. E tirou a nossa venda. Lembro-me que me causou uma má impressão aquele lugar, um quarto fechado, uma espécie de caverna pintada de preto, sem janelas e ilustrada por símbolos de morte. Tendo como base o conhecimento de outras culturas que se utilizam em seus processos iniciáticos de objetos alegóricos, após alguns momentos sozinho naquele local, passei a compreendê-los e identificar os objetivos da sua existência. Por essa descrição consegui compreender a mensagem iniciática “SOMOS PÓ E AO PÓ REVERTEREMOS”, ela explica a idéia da caverna e o sentido essencial da iniciação, ou melhor, aquela Câmara, impenetrável à luz do dia, cercada de emblemas fúnebres, vem representar alegoricamente o seio da Terra, ao qual baixamos.

Na realidade, ali somos mantidos, simbolicamente como sepultados, afinal qualquer iniciação é uma morte, seguida de um renascimento, ou, tudo ali não passa de um convite para nos induzir a meditar sobre os transcendentes problemas da vida e da morte. Assim sendo, na Câmara existia: uma mesinha, um tamborete, uma vela que pouco iluminava, naquela escuridão total de túmulo, um crânio (símbolo da morte e do renascimento para a vida espiritual, ou seja, normalmente também se utiliza desse objeto no intuito de nos advertir que devemos nos despojar de nossa personalidade, afim de prepará-la para o renascimento que normalmente se ambiciona), um galo (representando o despertador da esperança e o anunciador da ressurreição, ou em outras palavras, é ele que anuncia todos os dias com o seu canto o aparecer do dia, a luz), acima dele uma frase num papel “Vigilância e Perseverança” (somente trabalho contínuo e a paciente perseverança nos levará a alcançar a Iniciação), uma ampulheta, uma foice, um caixão, (vem nos lembrar que a obra do tempo domina e sobrepuja as formas transitórias), gravadas em branco algumas frases agressivas, acredito que destinadas a nos provocarem impacto e bem a minha frente uma sigla que após passar todo esse processo, admito que fiquei curioso e fui buscar a sua explicação: V.I.T.R.I.O.L. , “Visitas o interior da terra, retificando, encontrarás a pedra oculta”, já que a alegoria fundamental da iniciação é a morte, preliminar de uma nova vida, que originará o renascimento iniciático, V.I.T.R.I.O.L., pode ser assim analisado: que devemos descer às profundezas do nosso eu interior e, retificar o nosso ponto de vista, no silêncio e na meditação, afinal, até porque somente dentro de cada um de nós, encontraremos a sabedoria.

Após um determinado tempo, o Ir.’. Terrível, encapuzado, voltou ao nosso encontro, ingressou em nosso túmulo e disse: – Profano, a Associação de que desejas fazer parte, pede para respondas às perguntas que te apresento. As tuas respostas não nos ofenderão, mas delas dependerá a nossa aceitação ou a nossa rejeição? E nos entregou o impresso de nosso Testamento, mas não era qualquer documento, era um testamento filosófico, do qual acredito seremos executores testamentários, haja vista que aquele testamento não era para a morte, mas um testamento para a nova vida a que nos propomos.

Ainda faltavam outras três provas (do ar, água, fogo, ressaltamos que a da terra ocorreu na Câmara das Reflexões), realizadas já no interior do templo e novamente vendados, que podem ser interpretadas como ritos de aprofundamento de passagem, de purificação crescente. Podem ser analisadas como ritos de margem neste vestibular espiritual para uma esfera mais sagrada. Neste processo de alquimia mental e espiritual estaria se matando, homeopaticamente, o profano para o renascer, simbolicamente doloroso e ao mesmo tempo glorioso, do Apr.’..

E aqui nos socorremos de Mircea Eliade (1993:12) quando diz que:

“(…) a maior parte das provas iniciáticas implicam de maneira mais ou menos transparente, uma morte ritual se seguiria uma ressurreição ou novo nascimento. O momento central de toda iniciação vem representado pela cerimônia que simboliza a morte do neófito e sua volta ao mundo dos vivos. Mas o que volta à vida é um homem novo, assumindo um modo de ser distinto. A morte iniciática significa ao mesmo tempo o fim da infância, da ignorância e da condição profana. “

O batismo de sangue significa o começo de um ritual de agregação, algo que na Igreja Católica se chama de Comunhão dos Santos, isto é, qualquer iniciante depois de purificado pelas provas começa a participar, a ser agregado simbolicamente à comunhão de todos os Maçons.

O juramento teria algo do rito de margem, pois o iniciante, já agora menos poluído pelo mundo profano e mais ciente do sagrado, passa a ter então os pré-requisitos mínimos para um juramento mais consciente.

O nascimento pode ser analisado como o nascer biológico do novo ser, um rito de agregação ao mundo da Luz e da comunidade dos IIr.’., que, em seguida, é batizado pelo ritual de iniciação propriamente dito. Nasce-se e imediatamente se é iniciado, sem perda de tempo, em suma, um rito sumário de agregação, a culminância do processo iniciático. A passagem dos segredos de reconhecimento pode ser entendida como um reforço do ritual de agregação, um modo e um processo de comunicação rápido e instantâneo para melhor agregar a comunidade dos eleitos.

E por último, mas não menos importante e como tal não poderíamos deixar de lembrar, o banquete, que não fazendo parte direta da cerimônia do templo, insere-se num contexto de um ritual de re-agregação. Aqui, já se está de volta ao mundo profano, mas como alguém que circulou pela esfera do sagrado e volta ao mundo profano aureolado pela sacralidade. É como uma espiral; deu-se um giro de 360º, mas num outro nível, outro em outro patamar; está-se no mundo profano mas como um ser consagrado.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, tendo como ponto de partida os conhecimentos advindos da nossa formação de Cientista Social e esperando ter conseguido contribuir humildemente com os IIr.’. com as nossas reflexões, compreendemos que em todas as escolas Herméticas há um processo de Iniciação, caracterizado exotericamente através de uma Cerimônia de Iniciação. Este procedimento, longe de ser entendido como um importante processo iniciático, é um ato muito significativo, cujo valor está oculto sob a verdadeira aparência de um véu exterior. Por isso, avaliamos que para descortinarmos o aspecto esotérico, é preciso que nos afastemos dos conceitos profanos, muitas vezes contaminados pela dicotomia maniqueísta do bem e do mal, herança de dogmas religiosos e de falsas construções ideológicas, que somente desse modo, poderemos vir a entender o simbolismo desse “desbastar a pedra bruta”, como uma forma de amoldar o espírito, desvencilhando-se dos defeitos e paixões. Nesse prisma, é de se lembrar que a busca do justo e perfeito é a caminhada na direção da construção moral e essa construção inicia-se pelo lapidar de uma pedra… que somos cada um de nós.

Davys Sleman De Negreiros, A.’.M.’.
GLOMARON, B.’.L.’.S.’. THÊMIS & ÁGORA Nº 20, Or.’. de Rolim de Moura/RO – / Brasil

 

Referências Bibliográficas:

  1. ADOUM, Jorge. “Grau de aprendiz e os seus mistérios”, São Paulo:Editora Pensamento, 1987.

  2. CASSIRER, Ernst. “Linguagem e Mito”, São Paulo: Perspectiva, 1986.

  3. CASTELLANI, José. “Liturgia e Ritualística do Grau de Aprendiz Maçom (em todos os ritos)”, São Paulo: A Gazeta Maçônica, 1985.

  4. DURKHEIM, Émile. “As Regas do Método Sociológico”, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1992.

  5. ELIADE, Mircea. “Tratado de historia de las religiones”, Madrid: Ed. Cristiandad, 1993.

  6. GENNEP, Arnold Van. “Ritos de Passagem”, Petrópolis-Rio de Janeiro: Vozes, 1978.

  7. LINHARDT, Godfrey. “Antropologia Social”, Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

  8. MACIVER, R. M. “Society: An Introductory Analysis”, New York: Rinehart, 1950.

  9. ORTEGA & GASSET, José. “El hombre y la gente (Obras Inéditas), Revista de Ocidente, Madrid, 1959.

  10. TITIEV, Mischa. “Introdução à Antropologia Social”, Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1972.

  11. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Antropologia: O homem e cultura”, Petrópolis-Rio de Janeiro: Vozes, 1991.

  12. VASSAL, Pierre-Gérard. “Curso Completo de Maçonaria: História geral da iniciação”, São Paulo: Madras, 2005.

  13. WILLEMS. Emílio. “Antropologia Social”, São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.